Wednesday 18 November 2009

Vigilância e Encenação

As imagens captadas por câmeras de vigilância são comumente associadas à idéia de um registro automático, realizado por sistemas que funcionam sem necessidade ou presença de realizador, fotógrafo ou operador de câmera - sujeitos indispensáveis na realização de filmes das mais diversas naturezas.

Neste sentido, um valor de objetividade é supostamente atribuído às imagens de vídeo-vigilância, o que faz com que sejam, via de regra, tomadas como prova daquilo que ‘realmente acontece’, e não como uma encenação, um recorte ou a expressão de uma subjetividade.

Esta problemática identificação imediata das imagens com o real coloca os circuitos de vídeo-vigilância em um terreno que situa-se curiosamente fora da chamada crise da representação, a qual as imagens da pintura, da fotografia, do cinema, e mesmo da televisão, parecem atravessar.

A carga ficcional que toda imagem traz consigo - e aqui vale lembrar da afirmação de Jean-Luc Godard, de que “todos os grandes filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção”[1] – parece a anular-se nestes circuitos. Onde surgem, as imagens justificam-se por sua veracidade instantânea: seja no âmbito dos flagrantes policiais, jornalísticos ou pornográficos; seja no universo dos reality shows, das câmeras escondidas e das pegadinhas.

Experimentos empreendidos no campo da arte contemporânea desde os anos 60, por pioneiros como Bruce Nauman, com "Video Surveillance Piece (Public Room, Private Room)"(1969-70), por exemplo, ou Dan Graham, com «Present Continuous Past(s)» (1974), entre outros, investiram justamente no jogo entre esta expectativa de um espaço/tempo real gerada pelo circuito de vídeo e a possibilidade de torcê-la, espelhá-la, invertendo a lógica do consumo das imagens e trazendo à tona sua inevitável dimensão perceptiva, cognitiva e afetiva.

Inspirados por estas práticas das artes visuais, vamos aqui investigar caminhos para um jogo entre os códigos sugeridos pela imagem de vigilância e práticas cênicas contemporâneas, justamente no sentido de subverter a forma como os circuitos são habitualmente experimentados, expandindo assim a experiência teatral. E aqui tomamos o Teatro não somente em seu sentido clássico, mas sobretudo na teatralidade presente em toda e qualquer situação, toda e qualquer imagem.

Para tanto iremos nos concentrar na análise de alguns trechos do espetáculo “Corte seco”, desenvolvido pela diretora Christianne Jatahy e sua Cia. Vértice de Teatro no Rio de Janeiro. Este espetáculo conta com um circuito fechado de vídeo composto por seis câmeras, instaladas em espaços aos quais o público da sala do teatro não tem acesso no momento da apresentação: os camarins, a coxia, o saguão de entrada e o exterior do teatro. Espaços supostamente fora de cena. Três monitores em cena permitem que estes lugares sejam televisionados para o público, produzindo uma situação aonde o espectador, assim como um vigia, terá de exercitar uma atenção múltipla, relacionando o que (acredita que) vê no palco com o que (acha que) vê na TV. A imagem técnica, asséptica, automática do circuito de vigilância resiste a tornar-se lugar de teatro, e apresenta-se como lugar de realidade. O jogo consiste em forçar esta resistência, esta irredutibilidade, sobrepondo ao que se vê no monitor de TV um discurso que contradiz a imagem, que semeia dúvida, e que proporciona novas experiências estéticas e artísticas a partir da presença do dispositivo de vigilância reconfigurado. A incerteza persiste: o que é encenado e o que é real? A cena está no palco, no monitor ou no olhar do espectador?


[1] Godard, Jean-Luc. L’Afrique vous parle de la fin et des moyens. In: Cahiers du Cinéma. N.º 94, Avril, 1959, p. 21.

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