Monday, 16 February 2009

Invasão Consentida

Uma das maiores justificativas para a presença de câmeras de vigilância é a segurança. Por ela, para evitar qualquer ação violenta e identificar comportamentos que não estão de acordo com os padrões sociais aceitáveis, sejam eles regidos pela Constituição ou por uma sociedade patriarcal cristã, são instaladas câmeras em lugares públicos e privados. Entretanto, segundo estudos revelaram, e o que é divulgado diversas vezes pela mídia, com ou sem intenção, vê-se que esses dispositivos não garantem a integridade dos indivíduos ou dos locais, uma vez que não inibem roubos, furtos e outros crimes, por exemplo. É um sistema limitado de segurança em que, raramente, os culpados são pegos.
Contudo, quando se fala em câmeras instaladas em casa, as que vigiam filhos e babás, os resultados são mais definidos. Diversos casos em que os filhos eram maltratados por empregados foram descobertos. E os culpados foram punidos. A imprensa ajudou a divulgar esse sistema. Porém, as câmeras não são expostas; os empregados não sabem, em geral, que existem câmeras pela casa, e esta é uma das questões mais delicadas quanto ao uso desse dispositivo. Quem está sendo filmado não autorizou esse procedimento e tem o direito à privacidade violado. Sem contar que, a câmera evidencia que os patrões desconfiam do empregado.
Outro problema nos casos citados é que as câmera atestam que há algo de valor em um determinado lugar, que deve ser protegido. Nos espaços públicos a sensação é que elas estão presentes para manter a “ordem”. Nos privados, principalmente, indicam que a redondeza, o local, é perigoso, que há motivos para se ter medo. Elas acabam por promover este sentimento. E para tentar diminuir a insegurança e monitorar lugares e pessoas, as câmeras são utilizadas como protetoras da sociedade, ou seja, ficam com o papel da polícia, fixam limites e regras que devem ser obedecidos, não contestados. Tem de se pensar o que realmente está sendo feito, observado. O que deve ser vigiado, controlado? Existe razão para tanto medo? Ou ele é apenas uma excelente ferramenta para justificar as câmeras que monitoram o homem com algum outro interesse?
Neste contexto, vale refletir um pouco sobre o papel do discurso. Segundo Michel Foucault, em seu livro A Ordem do Discurso, este “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”1. Se o discurso é uma forma de controle, assim como a família, a prisão e a escola, por exemplo, por que ele não perde sua força, como os outros, de certa forma, perderam? Os exemplos abordados no texto de Deleuze e citados por Foucault já não são instituições que têm o mesmo respeito dos séculos passados. De tempos em tempos a sociedade tenta resgatar sua validade, mas o fato é que as revoluções que atravessaram os anos transformaram permanentemente a maneira de o homem ver o mundo.
Por outro lado, o discurso sempre se refaz. A própria língua é um instrumento modernizante. Por isso, o controle que ele é capaz de produzir, não é tão facilmente desmontado. Foucault diz que a verdade do discurso, “pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso submeter-se (...) se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado”2. O discurso ostensivo e incontestável sofreu modificações, uma vez que no século XIX surgiu a vontade de saber mais sobre tudo o que cerca o indivíduo – a vontade de verdade.
Essa vontade de verdade, claro, é conduzida por cada sociedade, de acordo com o é que valorizado por esta. Entretanto, existe um tema que é de comum interesse para a maioria das pessoas no mundo: segurança. Assim, baseado no que é importante, necessário para “bem comum”, as câmeras de monitoramento se vêem justificadas, pressionando contra qualquer outro discurso contrário ao dela. Elas existem para que possa haver proteção, segurança, controle do que se passa, ainda que elas não impeçam atos que infrinjam a lei de acontecerem.
Outra forma de controle são os sites de relacionamento, como Orkut, Facebook, MySpace, etc. É um monitoramento consentido. A própria pessoa se expõe – ou exibe quem gostaria de ser –, deixando fotos, vídeos, comunidades e recados à mostra. Contraditoriamente, muitos que fazem isso, reclamam da falta de privacidade! Há os que querem ver e os que preferem ser vistos.
Artistas também reclamam constantemente da invasão de privacidade que sofrem com pararazzis, que usam além da câmera fotográfica, uma filmadora. Procuram flagras e detalhes da vida pessoal de famosos para alimentar programas e revistas de fofocas. Aliás, muitos deles só falam sobre a vida dos artistas. E a audiência é grande, a curiosidade do ser humano move essa indústria. E apesar do surgimento do Photoshop e as todas as modificações que podem ser feitas, a foto ainda serve como vigilância, mas não mais como prova. Por outro lado, quem vive da mídia precisa dela para continuar “sendo notícia”. A exposição acaba sendo a moeda de troca da profissão.
Já no caso dos reality shows, a polêmica é se o que é reproduzido na TV é a “realidade” do que aconteceu com os participantes, pessoas “comuns”, ávidas por alguns minutos de fama. Uma vez que até as imagens de uma câmera de segurança podem ser forjadas, por que não as de um programa que vive de audiência, editado, que seleciona os candidatos de forma que eles possam “representar” personagens “reais”? Será que a “realidade” seria mais interessante do que a “ficção”? Como expõe o paradoxo revelado por Nietzsche, “O mundo ‘aparente’ é o único; o ‘mundo verdadeiro’ é somente um acréscimo mentiroso”, dessa forma, acaba-se conseguindo criar o ideal de verdade, como menciona o texto de Ilana Feldman.
Mas, além disso, atualmente a co-participação dos indivíduos na produção de vídeos e fotos de vigilância tem aumentado. Muitos interessados no quadro “Eu repórter” do jornal O Globo aderem às campanhas que estão espalhadas pelos Outdoors da cidade com dizeres como “Carro andando no acostamento? Fotografe.” Até vídeos podem ser enviados. As campanhas, que parecem uma tentativa de promoção da cidadania, de educação, também criam a sensação de que todos estão sendo observados a qualquer hora do dia, em qualquer lugar.
Até mesmo na Internet, há controle. Diversos sites monitoram as visitas que recebem e conseguem identificar para onde o internauta vai depois. Alguns sites de e-commerce, como o Amazon.com, por exemplo, memorizam o que interessou ao dono de tal IP e apresentam produtos parecidos ou mostram a sua última compra, mesmo que um cadastro não tenha sido feito. É o dataveillance, citado no texto de Thomas Y. Levin.
Mas dois dos sistemas de controle que mais assustam são o Projeto ECHELON e os sistemas telefônicos baseados no protocolo ISDN, abordados por Levin. E a justificativa, acredito, vai ser aceita pela população dos países participantes, uma vez que o terrorismo é visto como a grande ameaça do século. Mas é imensurável a perda de privacidade. E inúteis os projetos. Mesmo com todo o controle de escutas telefônicas e envio de dados via Internet, não há garantias de segurança. Sempre é possível burlar sistemas. Não estão sendo pensadas, ao menos como deveriam, as conseqüências da criação de sistemas de controle como esses.
Ainda falando sobre o texto de Levin, é possível relacionar alguns filmes, além dos já citados por ele quando aborda a relação entre o cinema e a vigilância. O filme Minority Report (2002), de Philip K. Dick e Scott Frank e dirigido por Steven Spielberg e, mais recentemente, o filme Controle Absoluto (2008), dirigido por D.J. Caruso, mostram uma tecnologia de alta capacidade.
O que parecia impossível há tempos atrás, hoje é viável. Já existem países desenvolvendo tais sistemas de vigilância, de prever algo que vai acontecer ou de escutar as conversas e controlar sinais de trânsito e etc. Em outro filme, Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008), até o funcionário ético, interpretado por Morgan Freeman, aceita ouvir ligações telefônicas em nome da ordem, da segurança – ela, mais uma vez.
Por enquanto ainda não há, no Brasil, câmeras de vigilância por todas as ruas. E se esse dispositivo estivesse disponível, a quantidade de imagens produzidas, certamente, não seria vista com precisão. Não teríamos um número suficiente de profissionais para observar as câmeras e os ambientes por todo o tempo e conseguir identificar comportamentos ditos suspeitos – o que depende do ponto de vista, da cultura etc.
Além disso, as gravações que já existem devem ser guardadas sem que alguém sequer as assista, se um crime não acontecer. E investimentos nesses sistemas estão sendo feitos sem que a população seja consultada; são justificados na segurança, na proteção contra um inimigo que não tem rosto, forma ou cor. Antes de os dispositivos de vigilância serem completamente instaurados, os grandes centros de inteligência deveriam avaliar até que ponto o desenvolvimento da tecnologia trás reais benefícios para a sociedade.

1 FOUCAULT, Michel. “A Ordem do Discurso”. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 10.
2 FOUCAULT, Michel. “A Ordem do Discurso”. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 15.

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