Introdução
Somos vigiados. Somos vigiados desde que nascemos, seja por nossas mães, ou pelas enfermeiras que fazem os primeiros exames. Quando pensamos em vigilância, usualmente, tendemos a olhar apenas para seu lado mais opressor e, por isso mesmo, medonho. Tememos a possibilidade de nossa liberdade ser, de alguma maneira, atingida e impedida. Pensamos que uma vez vigiados somo então controlados.
Porém esquecemos que a vigilância está presente em nossas vidas antes mesmo de termos discernimento para escolher entre o sim e o não, o quente e o frio. Além de sermos vigiados, também vigiamos. Gostamos e exercemos o papel de saber o que os outros fazem, falam, comem e bebem, se reciclam seu lixo ou o jogam no chão. Posto isso, penso, dar a vigilância a banalidade do corriqueiro apenas me distrai do verdadeiro sentido, talvez muito mais antropológico, por que vigiamos, por que queremos ser vigiados?
Em um mundo de crescente tecnologia a possibilidade do rastreamento se torna cada vez mais presente e real. No entanto, diferente dos antigos contos e romances apoteóticos, não fomos obrigados a usar esses dispositivos, mas, sim, os escolhemos, aceitamos e passamos a alimentá-los. E aqui entra meu principal questionamento, estamos passivos ante aos mecanismos de vigilância digital?
Vigia-me ou te devoro
Enquanto pensamos na involuntariedade da vigilância, deixamos passar a necessidade do ser vigiado, do ser visto, do querer ser visto, do querer ser amado que algumas pessoas têm. Na extensa lista de redes de relacionamento hoje disponíveis na internet é fácil encontrar exemplos disso. Pessoas que a todo custo buscam, não a fama, mas a visibilidade. E reduzindo isso a uma escala menos estereotipada, qualquer um que usa esse sistema está ali tanto para ver, quanto para ser visto.
Merleau-Ponty nos mostra exatamente isso e mais, quando fala que ao ver, o observador se revela. O seu ato o denuncia. Ponty nos apresenta um grande quebra-cabeça em que o observado (ou a sua imagem) é construído através da somatória das observações feitas sobre ele mais as observações que ele faz. Pois ver é ser visto. E isso se transformou, agora, em ser é ser visto.
Colocando isso em termos necessariamente mais práticos, que no nosso caso o Orkut se encaixaria muito bem, para entender assim o profile de uma pessoa, teríamos de analisar quem e o que ele acessa e quem o acessa. Juntando essas informações poderíamos então traçar um perfil ou encaixar essa pessoa em um. Em outro exemplo, no Twitter, rede social de microblogs, podemos seguir as pessoas, recebendo assim suas mensagens em nossa página. Esse caso é ainda mais gritante, pois o meu profile é claramente construído através das minhas observações aos outros.
Estamos inseridos em uma sociedade de controle e nela fomos transformados em cifras, idéia apresentada por Deleuze, e no mundo da internet, em código binário. Somos um dado, deixamos de ser um nome, uma assinatura, somos informação. E ainda passamos de meros usuários a alimentadores do sistema. Muitas vezes nem sabemos que nossas ações estão sendo monitoradas, computadas e catalogadas.
Esses dados podem ser então indicadores de tendências e gostos, somados podem mostrar tanto o que um indivíduo quer, quanto em maior escala, prever qual é o interesse de um grupo. Como destaca Fernanda Bruno em relação à vigilância digital,
“Na atualidade, trata-se sobretudo de ver adiante, de prever e predizer, a partir dos cruzamentos e análises de dados, indivíduos e seus atos potenciais; seja para contê-los (como no caso de crimes, doenças, em que tende a predominar uma vigilância preventiva), seja para incitá-los (como no caso do consumo, da publicidade e do marketing)”.
É uma vigilância da predileção, onde através da coleta de dados se pode tentar prever algumas das inúmeras possibilidades que compõem a vida.
Bruno ainda destaca que mesmo essa previsão sendo, muitas vezes, apenas uma possibilidade ou dados que se encaixam em perfis pré-estabelecidos, ela se torna real e efetiva ao impedir ações de algo ou alguém ou o incitar a cometê-las. Houve uma transformação do pensamento vigilante da sociedade de disciplina para a sociedade de controle, antes, como coloca Deleuze, o foco era o ato de produzir, hoje o produto. Bruno completa ao entender o papel da vigilância digital nessa sociedade, “ela pretende agir sobre a ação possível de indivíduos ou grupos, em vez de querer reformá-los, como na vigilância disciplinar.”
Porém diferente de algo que para nós se apresenta como novo, o aspecto vigilante da internet é inerente a esta desde sua fundação. Ela, ou a forma como a conhecemos, baseada no par de protocolos TCP/IP sempre trouxe a idéia do rastreio e do direcionamento. O TCP que quebra nossas informações para serem transportadas em pequenos blocos e o IP que as endereça e mostra seu caminho. Mesmo que seja uma prática não regulada e, até mesmo, de certo ponto criminosa, sempre foi possível entender tanto para onde iam e o que continham nossos pacotes de informação. Logo não é de se estranhar que Bruno diga, “a vigilância se confunde hoje com a própria paisagem do ciberespaço.” Não apenas a paisagem, mas também seu subsolo e núcleo.
O (de)gênero humano
De certo ponto pareceria ilógico pensar que a vigilância digital é silenciosa e esse silêncio se daria em dois níveis, a sua resposta seria secreta e sua presença escondida. A primeira já vimos por todo esse trabalho é irreal, mas e a segunda? Saberiam os usuários que estão sendo vigiados e até mesmo manipulados? E o que fariam se descobrissem? Como Bruno mostra no início de seu trabalho, está presente nos termos de uso dos serviços do Google (e pensa-se que outros sites façam o mesmo) tudo o que eles fazem com os dados, logo caso alguém tenha lido (e todos supostamente deveriam ler para usar esses serviços) está ciente disto.
No entanto, não só sabemos como nos utilizamos desses mecanismos para produzir efeitos diversos e aqui se encontra o grande ponto deste trabalho e, que é para mim, o grande fator que inibe a possibilidade da existência, tanto agora quanto no futuro, de um modelo de controle parecido com o medonho 84, a interferência.
Internautas brasileiros ao perceber o mecanismo de indexação de palavras disponível no buscador do Google começaram a ligar palavras para produzir piadas. Dessa maneira quando se buscava no Google “atriz gorda”, na página de resultados o Google mostrava a seguinte frase logo no início: “Você quis dizer Preta Gil”. Esse mecanismo relaciona as palavras procuradas aos sites mais clicados e fornece essas associações para facilitar a vidas dos pesquisadores.
O que esse episódio ilustra é a fragilidade desses sistemas de coleta de informação, sendo possível, uma vez descoberta a fonte, produzir efeitos desejados nesses sistemas. Algo que não podemos deixar de lembrar é que o que se passa por passividade pode ser na verdade a negação de uma atitude. A vontade de não fazer. O querer ficar parado.
Bibliogafria
BRUNO, F. Dispositivos de vigilância no ciberespaço: duplos digitais e identidades simuladas. Revista fronteira, São Leopoldo/RS, v. VIII, p. 152-159, 2006.
DELEUZE, Gilles. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto
Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 103-110
Texto escrito por Leonardo Nunes para a disciplina Estética da Vigilância - ECO/UFRJ
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