Tuesday, 14 April 2009

Olhares Mecânicos

1. Introdução:
Habituados a ver as câmeras de segurança como símbolos de uma sociedade em que o controle é crescente e a liberdade constantemente cerceada, o indivíduo contemporâneo demoniza as engenhocas por sentir-se parte de um Big Brother constante.
Os demonizadores das câmeras vêem na incorporação dessas no dia-a-dia a personificação do romance de George Orwell. A distopia inglesa “1984” apresentava um mundo em que os indivíduos eram constantemente sujeitos ao controle através das câmeras, ate mesmo dentro de suas casas.
De fato, as câmeras de vigilância brincam com o tênue limite entre o privado e o publico no mundo pós-moderno. Mas analisando a sociedade atual, cabe a questão: não seriam as câmeras de vigilância apenas mais um elemento de um fenômeno contemporâneo de confusão entre privado e publico do que o próprio fenômeno em si?
Ao longo do texto, apresento as câmeras sob um novo foco. Tento possibilitar uma nova relação com as mesmas. Afinal, a presença delas já é inquestionável. Elas não vão deixar de ser instaladas. A relação com as mesmas pode, no entanto, transformar-se em algo mais interessante se, ao invés de simplesmente opormos a elas, buscarmos novas formas de interação.

2. A Tênue Linha entre Público Privado:
Uma das críticas mais freqüentes às câmeras de vigilância é a de que estas estariam invadindo o espaço privado. Os indivíduos sentem-se cerceados e observados o tempo todo, em momentos até em que se questiona o que, afinal, há para se observar. Quem nunca se incomodou com a presença indiscreta das câmeras nos elevadores, por exemplo? A simples decisão de ajeitar o soutien ou dar uma coçada mais indiscreta no nariz é às vezes inibida pela presença do olho mecânico.
A questão é que, o trajeto feito no elevador, por exemplo, classicamente um tempo de repouso – pela ausência do olhar do outro – ganha outro sentido quando se está sob o olhar vigilante. O momento de pausa perde um pouco a espontaneidade.
E o que dizer das câmeras em residências? Colocadas sob a justificativa da proteção, empregadas domésticas e babás são submetidas à monitoração constante – e freqüentemente não declarada – dos patrões através das filmadoras.
Tudo isso gera um incomodo crescente, pois a sensação é a de que o privado torna-se público. Se pensarmos no lazer do homem contemporâneo, no entanto, fica difícil compreender o que exatamente o incomoda nessa questão quando, voluntariamente, as pessoas expõem, em seu lazer, sua vida privada.
As redes sociais como Orkut e Facebook ilustram bem essa questão. Usados em momentos de lazer, nada mais são do que uma grande confusão entre o que é privado e o que é público. Os usuários liberam na internet fotos íntimas, com família ou parceiros a quem quiser acessar. É a vigilância concedida.
E o que dizer do sucesso dos programas de realidade – os reality shows – em detrimento da ficção. O famigerado – e aparentemente infindável – Big Brother da Rede Globo atinge índices de audiência e se reverte em um faturamento com publicidade muito maior do que os filmes da Tela Quente, por exemplo. Há um fetiche pela ilusão de realidade do programa. O curioso é que este consiste em nada mais do que um grupo de pessoas sujeitas à vigilância constante em suas vidas “normais”. Não há nada de extraordinário ocorrendo, é apenas o cotidiano de um grupo de adultos em uma casa.
Esse valor positivo que a câmera recebe quando é aplicado ao entretenimento é um forte indício que há espaço para a construção de uma relação mais positiva do homem com as câmeras de vigilância.

3. Deleuze e a Sociedade de Controle:
Em seu livro “Conversações”, Deleuze traça uma evolução histórica da sociedade. A origem começa na sociedade de soberania, evoluindo para a sociedade disciplinar e culminando, nos dias de hoje na sociedade de controle.
A diferença central entre a sociedade disciplinar e a de controle seria de que, nas sociedades disciplinares, o controle se dava de forma descontínua. Entre a passagem da família para a escola e da escola para a fábrica, havia a sensação de recomeço. Ainda que em todas as instituições houvesse uma tentativa de se moldar o indivíduo, esses moldes variavam, havia a sensação de mudança.
Na sociedade de controle, os moldes são menos duradouros, de curto prazo, com uma rotação mais rápida. No entanto, não há a sensação de ruptura e recomeço. O homem contemporâneo estaria atrelado a uma sensação um tanto angustiante de estar presa a uma situação continua. Uma sociedade onde nada termina.
O assustador é que, enquanto a vigilância e o controle na sociedade disciplinar estavam restritos a ambientes fechados, na sociedade pós-moderna o controle se dá em ambientes públicos, ao ar livre. Torna-se muito mais difícil a sensação de privacidade existir quando, nem mais a casa das pessoas é um ambiente de refúgio do olhar de uma esfera de controle.
No entanto há um fato ao qual já atentamos na Introdução e que parece ser central ao lidar com a presença desses mecanismos de controle: as câmeras de vigilância são realidade. A presença delas na vida do cidadão dos grandes centros urbanos não faz mais parte de uma projeção futurista. Elas já estão nos observando, e, pelo menos tão cedo, não parece que vão ser descartadas.

4. Artistas e Câmeras:

Com essa informação em mãos, e munidos também de visão crítica, mas bem-humorada, muitos artistas criam trabalhos utilizando-se dessas geringonças, buscando assim uma forma mais positiva de conviver com esse novo elemento. É daí que pode nascer uma nova relação.
Seguindo à polêmica instalação das câmeras no Centro de Produções Multimídia (CPM) na Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os alunos propuseram uma intervenção bastante curiosa.
Ainda que o homem contemporâneo esteja habituado à linguagem audiovisual, sua relação mais forte – e, portanto, na qual baseia a sua construção de sentido sobre as imagens – é com a ficção. E em obras ficcionais, um objeto ser foco da câmera só se justifica se, dali, nascer algum acontecimento. O olhar da câmera só se justifica quando algo de extraordinário se passa.
A imagem “real”, em real time, sem cortes ou edição, ainda é um elemento muito novo. Portanto, a relação que o indivíduo cria com esta é de expectativa, a eterna espera de que algo fora do comum vai acontecer. Tanto é que mesmo os ditos reality shows são editados seguindo a lógica da narrativa clássica de audiovisual: com elementos de intriga, suspense e romance. O cotidiano puro é entediante para o espectador. A atenção de um homem frente a uma câmera de vigilância, por exemplo, cai 70% após uma hora – motivo este pelo qual se privilegia o “vigilante automático”, o computador.
Com estes elementos em mão, os alunos da ECO fizeram uma performance baseada em acontecimentos absolutamente fora do comum, com invasões de extra-terrestres, danças e uma tresloucada Amy Winehouse. Desta forma ficava claro e aberto o espaço à discussão de como se buscar uma nova interação com essas câmeras, ao invés de simplesmente se opor a elas.

5. Conclusão:
As câmeras estão aí mirando a todos o tempo todo. Muitas vezes de forma imperceptível, mas sempre presentes. Por serem muito recentes ainda provocam bloqueios e estranheza. O desconforto inicial.
Mas, tendo o caminho de exploração desbravado por artistas, começa, ao menos a surgir a possibilidade de uma nova relação com as mesmas. Fascínio, a ilusão de realidade já exerce. Junto com as câmeras de vigilância popularizam-se reality shows, por exemplo.
Aberto está o campo para a discussão. Se o olhar eletrônico será eternamente demonizado como controlador, objeto de fascínio, ou, quiçá, visto como uma forma de zelo, de cuidado, só o tempo dirá. Até lá, sorria que você está sendo filmado.

Texto escrito por Heloisa Granja para a disciplina Estética da Vigilância - ECO/UFRJ


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