Ao afirmar que o plano-seqüência é a forma mais verdadeira de expressão cinematográfica, por impossibilitar a produção de falsas acepções causadas pela edição, o crítico e teórico de cinema André Bazin estava, de certa maneira, preconizando a formação da verdade absoluta que dominaria o cotidiano dos seres humanos nas eras contemporânea e digital; a de que as lentes das câmeras de vigilância, atentas vinte e quatro horas por dia, não mentem.
A comprovação de uma suspeita através do olhar externo é requisito básico do julgamento humano porque o próprio homem é dependente do registro de terceiros para a externalização de suas suspeitas, utilizando a visão que mais se adapta à sua como maneira de comprovar a tese por trás de sua linha investigativa. A imagem, seja ela fotográfica ou em vídeo, é a ferramenta de aplicação mais natural para este fim.
Estudos na França durante o século XVIII levaram à manufatura de câmeras capazes de fotografar as imagens impressas na íris humana. A questionável utilização dessas máquinas como prova de um crime acontecia caso elas fossem utilizadas poucas horas após a morte de uma pessoa em circunstâncias não muito claras. Teoricamente, a última imagem enxergada pela pessoa ficaria retida em sua íris por algum tempo; supostamente, esse borrão seria o rosto de seu assassino. Na maioria das vezes, a imagem não podia servir como prova de um crime. A técnica, porém, foi usada diversas vezes como prova em tribunal e chegou a condenar dois réus por assassinato. Atravessando mais de cem anos, a referência a Blow Up (1966), de Antonioni, é inevitável.
A busca objetiva do olhar humano por aquilo que é claro e direto pode explicar o porquê da progressiva redução na complexidade narrativa no cinema contemporâneo popular. Cada vez mais, a total entrega e a máxima clareza do que se passa na tela surgem como necessidades básicas para o sucesso comercial de uma película. O espectador busca imagens que assegurem ao seu cérebro estar enxergando peças de um quebra-cabeça que sem a menor dúvida o levarão a concluir algo indiscutível ao término da projeção.
A necessidade do acontecimento constante e o aproveitamento de cada quadro como ferramenta para a adição de uma nova informação parecem transformar o cinema em uma edição do grande material bruto que são as imagens gravadas através de câmeras de vigilância. Alguém que destinar-se a usufruir do aspecto contemplativo e zen de sentar-se em frente a uma tela conectada a um sistema de vigilância encontrará, ali, diversas imagens de potencial dramático. Essa estética pode ser encontrada no cinema em Koyaanisqatsi (1983), de Godfrey Reggio. Ao abrir mão de contar uma história linear, este longa-metragem pede a quem o assiste que formule suas próprias teorias para o que se vê. Godard afirmou uma vez que “todo documentário quer ser um filme de ficção e todo filme de ficção quer ser um documentário”. A interpretação do espectador ao que vê é vital para a conclusão de que o que vê é verdade, assim como ao encarar qualquer tipo de obra de arte. Não há verdade absoluta, portanto. Há apenas a verdade individual, aferida pela convergência de diversos pontos de vista em um só.
A crescente necessidade do controle por parte da sociedade explica a expansão cada vez mais expressiva das redes de vigilância. O panóptico de Jeremy Bentham, descrito por George Orwell em seu profético livro 1984, tornou-se realidade, curiosamente, não porque vivemos em um regime totalitário que a tudo e a todos quer controlar, mas porque as barreiras impostas pela era contemporânea supostamente transformaram-se em portais da era digital. O homem diminuiu distâncias, potencializou a interatividade e estendeu a alta definição da imagem aos mais minúsculos dispositivos equipados com uma tela, em um regime alardeado como o mais livre de toda a história da civilização. O caos não existe sem o cosmos; portanto, há de haver um sistema regulador para tamanha liberdade. A construção da genética perfeita, brilhantemente representada na ficção-científica Gattaca (1997), de Andrew Niccol, é outra das formas de controle buscadas pelo homem, desta vez, uma vigilância que permita prever o futuro, e não memorizar o passado.
A proliferação das câmeras PTZ (pan tilt zoom) é natural e já faz parte do cenário urbano há tempos. As novas gerações já nascem sem estranhá-las, como se fossem elas a garantia da segurança de poderem fazer o que quiserem: há alguém a vigiá-las e protegê-las. Concretizando ainda a máxima de Orwell de que “liberdade é escravidão”, a memória proporcionada pelas imagens digitalizadas torna-se uma arma poderosíssima nas mãos da acusação. Se não há memória, não há fato.
A fomentação da crítica aos sistemas de vigilância torna-se vital para a construção de uma consciência coletiva acerca da questão. A incorporação sistemática dessa tecnologia pela arte é, portanto, nada mais do que natural, pois da arte e por causa da arte surge a crítica. A escalada midiática da exposição da vigilância pelas instituições governamentais atingiu seu ápice durante os dois mandatos do presidente norte-americano George W. Bush, quando o investimento em vigilância foi intensificado com a famigerada justificativa do combate ao terrorismo. Ao mesmo tempo, a apropriação desse paradigma pelo cinema comercial hollywoodiano é cada vez mais evidente. O filme mais lucrativo de 2008, The Dark Knight, de Christopher Nolan, traz Batman transformando todos os celulares de Gotham City em dispositivos de vigilância de modo a encontrar seu arquiinimigo. Um dilema ético, porém, o faz perder um de seus maiores aliados. Percebe-se, portanto, que a crítica feita pelo pequeno circuito de arte expandiu-se a um patamar mais abrangente, embora, ainda assim, essa referência escancarada passe despercebida por alguns espectadores.
Em A Conversação (1974), Francis Ford Coppola elabora um dos mais ricos manifestos a respeito da vigilância na era contemporânea. O filme tem início com um plano-seqüência referencial dos telescópios de longo alcance. Por um bom tempo, a câmera acompanha um homem que nada tem a ver com a ação que se desenrolará e que de fato terá importância para o enredo. Coppola quer mostrar, logo em seus primeiros minutos, que o que estamos acompanhando como verdadeiro é propenso a questionamentos. O belíssimo plano final, composto apenas de movimentos similares aos de uma câmera PTZ, é a comprovação de que, na verdade, a vigilância tal qual a entendemos é uma prática impossível. Quem vigia também tem de ser vigiado, senão não há vigilância. A contradição desse suposto caráter zeloso e protetor remete a Watchmen, obra-prima de Alan Moore, considerada a mais importante graphic novel de todos os tempos. Na sentença quintessencial de sua história, o autor indaga: “Who watches the Watchmen?”.